Nesta quarta-feira (13), a Defensoria Pública da União (DPU) no Rio de Janeiro realizou um debate, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 08 de março, com o tema “A Flexibilização da Posse de Armas e a Violência Contra a Mulher”. O evento aconteceu na sede da DPU/RJ e contou com a participação de representantes das diversas áreas que atuam na defesa e assistência à mulher vítima de violência de gênero.
A proposta foi promover a análise das relações de gênero, a condição da mulher diante das estruturas sociais de dominação e o aumento da sua vulnerabilidade diante do cenário de flexibilização da posse de armas pelo Decreto 9.685/2019, assinado em janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro.
Céu Cavalcanti, integrante da associação “Elas Existem”, abriu as falas da mesa destacando que o debate proposto trata da “dinâmica como são compreendidas as diferenças entre os sujeitos masculinos e femininos e mais fundamentalmente de como essa diferença produz desigualdade. O ponto principal não é a diferença em si, mas sim de que modo, quando e por que ela se torna desigualdade e o caminho pelo qual essa desigualdade vira violência. Essa tríade é o ponto principal que precisamos sempre observar quando avaliamos as dinâmicas de violência de gênero”.
Sobre a flexibilização da posse de armas, Céu indagou “o que é uma arma senão uma ferramenta de produção de morte? É muito curioso como isso pode ser tido de forma positiva como uma política de proteção da vida. Quando se facilita e amplia o acesso a ferramentas de produção de morte, estamos automaticamente fazendo ecoar essa produção especialmente nos grupos que já são minoritários, vulnerabilizados e afetados por violências enormes. Não é à toa que o Brasil é o quinto país com a maior taxa de feminicídio no mundo, a frente inclusive de países onde há contexto de guerras e organizações hiper fundamentalistas”.
Na sequência, Simone Estrellita da Cunha, defensora pública estadual do Rio de Janeiro em exercício no Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), ressaltou que “a mulher ainda hoje, apesar de termos o primado da igualdade assegurado na Constituição Federal, continua sendo tratada como cidadã de segunda categoria. Nós mulheres, enquanto mulheres, sofremos discriminação e vivemos em um mundo díspar no qual são impostos códigos sociais desiguais baseados no gênero”. A defensora acrescentou que “algumas pessoas alegam que o homem também sofre discriminação de gênero e é verdade, mas ele não sofre violência de gênero. O homem não morre em razão do seu gênero e essa é a diferença. Por isso é preciso uma lei que proteja a mulher. As mulheres precisam de proteção porque estamos em um cenário de assimetria e dominação”.
A debatedora Maria Cecília Lessa da Rocha, defensora pública federal representante do GT Mulheres da DPU, passou então a apresentar dados estatísticos sobre a violência de gênero no Brasil desde 2003 e destacou a diferença nos números pré e pós Lei Maria da Penha. Maria Cecília ressaltou que “estes marcos normativos demonstram que não é vontade da sociedade brasileira que haja o aumento da violência contra a mulher. O que essas leis e normas comprovam tanto no plano interno quanto internacional é um efetivo enfrentamento a violência contra a mulher. É por esses instrumentos que vamos continuar lutando”. Segundo a defensora “precisamos difundir e utilizar os mecanismos internacionais aos quais o Brasil está vinculado que podem ser mobilizados para enfrentar esse novo contexto de aumento de violência, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Comitê para Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, ambos coma prerrogativa de receber comunicações individuais e fazer investigações temáticas quando recebem denúncias de violações generalizadas e/ou sistêmicas”. E concluiu: “o Estado brasileiro tem o dever especifico de atuar com a devida diligência, investigar violações e o dever de prevenção, ou seja, adotar todas as medidas no âmbito jurídico, político, administrativo, cultural para a salvaguarda dos direitos humanos das mulheres e ainda o dever de assegurar a efetiva e justa reparação a qualquer violação”.
Em seguida, Marisa Chaves de Souza, coordenadora do Centro de Referência da Mulher da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CRM/UFRJ) destacou conquistas além da Lei Maria da Penha, como a Lei 12.015/2009 , que passou a tratar as violências sexuais como crimes contra a dignidade humana, e a Lei do Feminicídio, que tornou a violência de gênero uma qualificadora do homicídio doloso.
Entretanto Marisa denuncia que “o que percebemos é que para que haja um sistema efetivo de garantias para as mulheres teríamos que expandir as delegacias e o centros de atendimentos às vítimas, no entanto, não há investimentos orçamentários e financeiros para que o serviço de atenção e atendimento especializado à mulher do estado do Rio de Janeiro possa funcionar. Existe uma precarização generalizada em todos os entes da federação. Diante desta realidade, não adianta termos uma boa delegacia se não há um centro de atendimento. Não adianta pensar em abrigo se não há uma atenção e uma política pública que garanta a autonomia social e econômica desta mulher”.
Segundo a coordenadora do CRM/UFRJ, “enquanto não revermos nossa forma de ver, falar e acolher a vítima, continuaremos de uma forma contraditória defendendo algo na teoria enquanto na prática realizamos processos de culpabilização, naturalizando a violência ou culpando essa mulher como se ela tivesse pedido para sofrer uma agressão. Essa circunstância faz com que a vítima entenda e tenha uma leitura subjetiva que a afasta de prosseguir na grande jornada que é ruptura da violência que tem marcado a sua vida”.
A respeito do argumento de que a facilitação do acesso às armas poderia servir para a própria defesa das vítimas, a defensora pública federal Letícia Sjöman Torrano, organizadora e mediadora do debate, destacou que essa posição devolve para a vítima a responsabilidade pela violência sofrida e suas consequências, além de perpetuar um ciclo de violência.
Ao final das falas da mesa, abriu-se o diálogo para perguntas da plateia. O evento foi encerrado por uma performance do grupo Madalenas Rio, do “Teatro do Oprimido”, com uma abordagem que reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais com o objetivo de transformar o espectador e a realidade através do diálogo e do lúdico.
GT Mulheres
A Defensoria Pública da União tem atribuição para atuar na tutela individual, na defesa das mulheres carentes em processos perante a Justiça Federal em todos os graus de jurisdição, e coletiva em qualquer violação de direitos humanos associada ao gênero. Por meio do Grupo de Trabalho Mulheres (
https://www.dpu.def.br/mulheres), são desenvolvidas atividades, em âmbito nacional nas esferas judicial e extrajudicial, como ajuizamento ações civis públicas para defesa de interesses coletivos das mulheres, promoção de campanhas de esclarecimentos de direitos e elaboração de notas, pareceres e recomendações que visem a resguardar direitos das mulheres, de modo a efetivar a garantia constitucional de igualdade de gênero.
As mulheres são o público alvo deste grupo de trabalho e compete ao GT Mulheres atuar no reconhecimento e defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulheres; monitorar ações de discriminação e violação dos seus direitos; disseminar o conhecimento do direito universal à educação, à saúde e à proteção previdenciária às mulheres; promover a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos; estimular a autonomia econômica da mulher e promover a igualdade no mundo do trabalho, em todas as suas acepções; assim como fortalecer a participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; atuando no enfrentamento e combate à violência contra a mulher, dentre outras medidas destinadas a coibir a violação de direitos.
Através do reconhecimento da condição de vulnerabilidade das mulheres o GT busca dar visibilidade às incontáveis violações de direitos de que elas são vítimas cotidianamente. Combatendo as práticas de violência de gênero e procurando dar efetividade aos seus direitos e garantias fundamentais, pretende-se que as mulheres possam atuar de forma paritária e democrática, tanto no âmbito institucional, como no espaço privado.