14 de novembro de 2018

Cartas da Prisão

(Marco Lucchesi, presidente da Academia Brasileira de Letras - ABL)

Do correio chegou certa vez uma carta inesperada. O remetente? Desconhecido. Trazia duas epígrafes: A literatura é a irmã gêmea da liberdade e para tirar o homem do erro é preciso dar, não subtrair. Simpatizei de imediato com as duas. Pertenciam ao rol de minhas certezas poucas. A defesa radical da literatura e da liberdade. E uma antiga (e sempre nova) consideração de um grande poeta, que disse: donde no hay amor ponga amor y sacará amor.  Mas qual foi a minha surpresa, quando voltei com maior atenção ao remetente. A carta era de uma penitenciária do Estado de São Paulo!

Estava endereçada no meu nome. Trazia uma proposta que me surpreendeu. Um prisioneiro desejava livros!! E havia um entusiasmo, uma demanda, uma energia  realmente novas para mim. Que fossem livros de ensaios, poemas, aventuras. Livros de todos os quadrantes. Policiais. Filosóficos. Seriam todos destinados à biblioteca, cujo acervo era de

“3000 livros para atender um público de 1000 leitores. Faz um ano, eram só 800 títulos.  A média atual de empréstimos é superior aos 1000 livros mensais.  Um recorde. Aqui é a “Atenas” do sistema penitenciário. Entretanto, dependemos da chegada de novas obras para manter o interesse pela leitura e sermos eficazes em formar e promover leitores”.

As epígrafes ganhavam assim maior sentido. E duma cena de escombros, emergia uma luminosa Atenas. Para Rafael – este será seu nome provisório, não estando eu autorizado a revelar-lhe a identidade –  é  “algo maravilhoso ver o que a leitura é capaz de produzir.  Muitas das pessoas que estão aqui nunca tinham lido um livro não-didático. Os primeiros livros são sacudidas existenciais...”

E pensar que, para muitas secretarias de educação, uma vintena de livros didáticos (e desatualizados) constituem uma biblioteca!! Rafael sabia que livros didáticos não formam um acervo compacto e homogêneo. Além disso, observava que as primeiras leituras correspondem a um abalo sísmico. A uma vivência irredutível. A um antes e depois.

Mas havia também uma política, uma engenharia para que o livro “cumpra a sua função e não vire alimento de traças”, como para certos bibliotecários, para quem a figura de leitor é um terrível e monstruoso detalhe, diante do Livro Sagrado.

As formas de convite ao livro eram diversas, voltadas para

 “a otimização no aproveitamento  do acervo.  A alma mater é o projeto livro comentado. Os livros são lidos e comentados. Os melhores comentários são premiados com certificados de participação, caixas de bombons, guloseimas e outros prêmios simbólicos... Organizamos festivais de leitura por autor (Machado de Assis, Érico Veríssimo, Dostoievski), ou por assunto (geração censurada, poesia, contos, vida de prisão). Outro festival em implantação,  é o “festival de escritura” –,  depois de certo ponto o leitor tem que arriscar-se a  escrever para continuar evoluindo. Realizamos também uma organização humana, em células, onde leitores experientes se responsabilizam  por orientar e incentivar um grupo (12) limitado de leitores, em formação e semi-avançados”.

Paulo Freire – não havia como não recordá-lo aqui – definiu a educação como sendo a  prática para a liberdade. O leitor e seus riscos. A dialética da escrita e da leitura. Todas as vozes. Todos os ventos.  E – passados cem livros – o leitor alcança o título de master, havendo, antes disso, outras divisões “com diferentes benefícios, o que implica uma engenharia motivacional  em torno da leitura”.

E no fim das cartas –  com  rara cortesia – Rafael se despede com um “simbólico aperto de mão, na mão que foi gentilmente estendida, em sinal de gratidão e amizade”.

Jamais lhe perguntei qual era a sua pena, como ele também jamais quis freqüentar meus silêncios e desvarios. E contudo, por razões de honestidade,  Rafael  achou  que devia sublinhar mais uma vez sua condição prisional:  “É justo esclarecer que estou (sou) preso. Não sou funcionário.”

Respondi que não somos  frios burocratas. Fantasmas. Idéias abstratas. Levamos  adiante, cada qual a seu modo, o rude ofício de viver... Obrigado, Rafael. Eu também não sou funcionário.

Demos vazão a sonhos e inquietações. Eu lhe admirava a coragem e o entusiasmo, superior ao de tantos intelectuais (ou menos que), mostrando-me devedor de seu trabalho, por incluir-me num projeto que alargava a minha e a dele (a nossa possível)  humanidade.

Três cartas depois, escreve:

“Retomo o contato por vários motivos. Fui transferido para outra unidade prisional. Estou na recém-inaugurada penitenciária de X. Aqui continuo a estimular o hábito de leitura e a elevação cultural de meus companheiros.  Entretanto, este lugar é novo. Mais seco que o anterior. Tudo está em zero. Sei que compartilha da visão da leitura como uma forma de crescimento humano e uma aliada na construção da felicidade. Não resisti a pedir-lhe uma nova contribuição”.

Compartilho de sua visão, Rafael. Da leitura como aliada do crescimento humano. E de uma provisória felicidade. Compartilho. Minha vida repousa (inquieta) nessa esperança. Dostoievski e Machado devolvem-me de mim para o Outro. E me libertam...

Depois disso, perdemos o contato. Não procurei saber sua idade, seu rosto, sua história. Porque a força de Rafael advinha da expansão de uma idéia. E isso era bastante.

Certa vez, disse-me Mario Francesconi, que olhar para o céu devia ser feito sempre a dois. A tarefa individual podia ser perigosa. Muitas vertigens. E infinitos. Entre Rafael e Marco houve um céu, uma tentativa de insistir. De travar guerras. E de assumir a literatura com todos os seus riscos, a partir daquela afirmação de Liberdade.

Não sei onde estará hoje Rafael, mas  tenho como certo de que devemos enviar muitos livros às penitenciárias,  abarrotá-las de livros e mais livros, e outros e mais volumes, de modo que não houvesse um só lugar para os presos, transformando as carceragens em vastas bibliotecas (corredores luminosos, cheios de fotos, quadros, grafitis), mantidas por uma legião de   leitores, a formar um longo poema de amizade entre os homens.

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