(Marco Lucchesi, presidente da Academia Brasileira de
Letras - ABL)
Do correio chegou certa vez uma carta
inesperada. O remetente? Desconhecido. Trazia duas epígrafes: A literatura é a irmã gêmea da liberdade e
para tirar o homem do erro é preciso dar,
não subtrair. Simpatizei de imediato com as duas. Pertenciam ao rol de
minhas certezas poucas. A defesa radical da literatura e da liberdade. E uma
antiga (e sempre nova) consideração de um grande poeta, que disse: donde no hay amor ponga amor y sacará amor. Mas qual foi a minha surpresa, quando voltei
com maior atenção ao remetente. A carta era de uma penitenciária do Estado de
São Paulo!
Estava endereçada no meu nome. Trazia uma
proposta que me surpreendeu. Um prisioneiro desejava livros!! E havia um
entusiasmo, uma demanda, uma energia
realmente novas para mim. Que fossem livros de ensaios, poemas,
aventuras. Livros de todos os quadrantes. Policiais. Filosóficos. Seriam todos
destinados à biblioteca, cujo acervo era de
“3000 livros para
atender um público de 1000 leitores. Faz um ano, eram só 800 títulos. A média atual de empréstimos é superior aos
1000 livros mensais. Um recorde. Aqui é
a “Atenas” do sistema penitenciário. Entretanto, dependemos da chegada de novas
obras para manter o interesse pela leitura e sermos eficazes em formar e
promover leitores”.
As epígrafes ganhavam assim maior sentido. E
duma cena de escombros, emergia uma luminosa Atenas. Para Rafael – este será
seu nome provisório, não estando eu autorizado a revelar-lhe a identidade
– é
“algo maravilhoso ver o que a leitura é capaz de produzir. Muitas das pessoas que estão aqui nunca
tinham lido um livro não-didático. Os primeiros livros são sacudidas
existenciais...”
E pensar que, para muitas secretarias de
educação, uma vintena de livros didáticos (e desatualizados) constituem uma
biblioteca!! Rafael sabia que livros didáticos não formam um acervo compacto e
homogêneo. Além disso, observava que as primeiras leituras correspondem a um
abalo sísmico. A uma vivência irredutível. A um antes e depois.
Mas havia também uma política, uma engenharia para que o livro “cumpra a
sua função e não vire alimento de traças”, como para certos bibliotecários,
para quem a figura de leitor é um terrível e monstruoso detalhe, diante do
Livro Sagrado.
As formas de convite ao livro eram diversas,
voltadas para
“a
otimização no aproveitamento do
acervo. A alma mater é o projeto livro
comentado. Os livros são lidos e comentados. Os melhores comentários são
premiados com certificados de participação, caixas de bombons, guloseimas e
outros prêmios simbólicos... Organizamos festivais de leitura por autor
(Machado de Assis, Érico Veríssimo, Dostoievski), ou por assunto (geração
censurada, poesia, contos, vida de prisão). Outro festival em implantação, é o “festival de escritura” –, depois de certo ponto o leitor tem que
arriscar-se a escrever para continuar
evoluindo. Realizamos também uma organização humana, em células, onde leitores
experientes se responsabilizam por
orientar e incentivar um grupo (12) limitado de leitores, em formação e
semi-avançados”.
Paulo Freire – não havia como não recordá-lo
aqui – definiu a educação como sendo a
prática para a liberdade. O leitor e seus riscos. A dialética da escrita
e da leitura. Todas as vozes. Todos os ventos.
E – passados cem livros – o leitor alcança o título de master, havendo, antes disso, outras
divisões “com diferentes benefícios, o que implica uma engenharia
motivacional em torno da leitura”.
E no fim das cartas – com
rara cortesia – Rafael se despede com um “simbólico aperto de mão, na
mão que foi gentilmente estendida, em sinal de gratidão e amizade”.
Jamais lhe perguntei qual era a sua pena,
como ele também jamais quis freqüentar meus silêncios e desvarios. E contudo,
por razões de honestidade, Rafael achou
que devia sublinhar mais uma vez sua condição prisional: “É justo esclarecer que estou (sou) preso.
Não sou funcionário.”
Respondi que não somos frios burocratas. Fantasmas. Idéias
abstratas. Levamos adiante, cada qual a
seu modo, o rude ofício de viver... Obrigado, Rafael. Eu também não sou funcionário.
Demos vazão a sonhos e inquietações. Eu lhe
admirava a coragem e o entusiasmo, superior ao de tantos intelectuais (ou menos
que), mostrando-me devedor de seu trabalho, por incluir-me num projeto que
alargava a minha e a dele (a nossa possível)
humanidade.
Três cartas depois, escreve:
“Retomo o contato por vários motivos. Fui
transferido para outra unidade prisional. Estou na recém-inaugurada
penitenciária de X. Aqui continuo a estimular o hábito de leitura e a elevação
cultural de meus companheiros.
Entretanto, este lugar é novo. Mais seco que o anterior. Tudo está em zero. Sei que compartilha da visão da
leitura como uma forma de crescimento humano e uma aliada na construção da
felicidade. Não resisti a pedir-lhe uma nova contribuição”.
Compartilho de sua visão, Rafael. Da leitura
como aliada do crescimento humano. E de uma provisória felicidade. Compartilho.
Minha vida repousa (inquieta) nessa esperança. Dostoievski e Machado
devolvem-me de mim para o Outro. E me libertam...
Depois disso, perdemos o contato. Não
procurei saber sua idade, seu rosto, sua história. Porque a força de Rafael
advinha da expansão de uma idéia. E isso era bastante.
Certa vez, disse-me Mario Francesconi, que
olhar para o céu devia ser feito sempre a dois. A tarefa individual podia ser
perigosa. Muitas vertigens. E infinitos. Entre Rafael e Marco houve um céu, uma
tentativa de insistir. De travar guerras. E de assumir a literatura com todos
os seus riscos, a partir daquela afirmação de Liberdade.
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