A data de 10 de
dezembro, em que se comemora o Dia
Internacional dos Direitos Humanos e, em 2018, os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi marcada
na Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro (DPU/RJ), com a exibição, nesta
segunda-feira, do filme “Auto de
Resistência”, documentário sobre os homicídios praticados pela polícia
contra civis no Rio de Janeiro, em casos conhecidos como "autos de
resistência". O filme acompanha a trajetória de personagens que lidam com
essas mortes em seus cotidianos, mostrando o tratamento dado pelo Estado a
esses casos, desde o momento em que um indivíduo é morto, passando pela
investigação da polícia, até as fases de arquivamento ou julgamento por um
tribunal do júri.
Após a exibição do
filme, no auditório da sede da Instituição, houve debate, que contou com as
participações de Thales Arcoverde Treiger, defensor
regional de Direitos Humanos; Natasha Neri, diretora e roteirista do
filme; Sérgio Verani, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro/TJRJ, professor da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro/Uerj e autor do livro “Assassinatos
em Nome da Lei”; e das mães de vítimas Maria de Fátima dos Santos Silva (da
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência) e Mônica Cunha (do
Movimento Moleque).
“Essas mulheres querem Justiça, mas também querem memória.”
A
roteirista e diretora do documentário “Auto
de Resistência” Natasha Neri contou que,
realizando uma pesquisa para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
fez uma espécie de garimpo de casos para saber como eles eram tratados dentro
do Sistema de Justiça. “A gente viu que, na verdade, os homicídios praticados
pela polícia não são tratados como homicídios. De antemão, eles são vistos como
outra coisa, a partir desse processo de desumanização dessas pessoas mortas, de
criminalização, de uma investigação sobre a vida pregressa dos mortos e não
sobre as circunstâncias das mortes. Uma acusação social desde o início. A
dinâmica do fato do Registro de Ocorrência é uma cópia fiel do depoimento do
policial. Quando vira inquérito, também é uma fala da versão policial. Então, a
gente vê que os casos seguem a tramitação natural, numa legitimação dessas
mortes, com o Ministério Público pedindo o arquivamento sem elementos
suficientes que comprovem que houve legítima defesa. Pelo que a gente vem
pesquisando, esses casos não são investigados como deveriam ser para sequer
provar a versão policial. Então, eles são arquivados sem que se esclareçam as
circunstâncias dessas mortes”, informou.
Natasha
falou sobre os objetivos do documentário. “O que a gente tentou fazer com o
filme foi trazer um pouco da dignidade, mostrar que não são casos isolados. É
um processo social que está em curso. Essas mulheres querem Justiça, mas também
querem memória. Enquanto elas estiverem de pé, se elas estão de pé, nós temos
que estar do lado delas. A esses meninos que foram mortos, que a gente possa
dar um nome a eles, possa reconstruir a memória deles, que a gente possa fazer
uma pouco dessa reparação que o Estado não faz. As mães lutam muito por uma
reparação, que não é uma reparação financeira. É uma reparação psicológica,
social, simbólica, uma reparação no sentido da memória, a possibilidade de a
gente lembrar deles todos os dias”, afirmou.
Para
a produção do documentário, foram três anos de convivência com as mães. “Já as conheço
desde 2014”, fala a diretora, que diz não haver como mensurar o quanto aprendeu
nesse período. “São aprendizados tão profundos que não cabem num filme.
Aprendizado sobre a luta, sobre resistir, compreender que essas mulheres, que
são mulheres negras, estão seguindo um legado de luta de 500 anos sobre formas
de resistência. No Rio de Janeiro, mesmo diante do agravamento dessa crise
humanitária que a gente está vivendo, elas resistem e não têm medo”, fala
Natasha.
“É
um aprendizado sobre como elas mesmas se fortalecem, como a luta delas é
reparadora. Se o Estado não dá esta reparação, é a luta delas que é a
reparação. É um aprendizado, quando elas se unem, quando se abraçam, se dão as
mãos... Poder ver esses laços tão fortes, que as mantêm vivas, que dão
significado à existência delas, que as fortalecem diariamente e que possibilitam
que muitas mães não caiam em depressão”, continua a diretora.
“Também
é um aprendizado sobre maternidade, sobre o que é ser mãe, sobre o que é o amor
de mãe, onde que o amor de mãe leva uma mulher. Leva a empurrar a Justiça, a
jogar na cara do Estado esse genocídio, que o estado do Rio, o Estado
brasileiro estão, infelizmente, promovendo diariamente nas favelas do Rio. Tem ainda
o aprendizado maior, que é espiritual, dessa força ancestral delas, dessa
energia transformadora que elas têm. Cada uma perdeu seu filho, mas essa morte é
vivenciada por elas de maneira coletiva. Nesse grupo, elas se despem de
qualquer individualidade e tornam essa luta coletiva por uma transformação
maior, que é a busca pela vida. Elas estão buscando a possibilidade do viver
das próximas gerações. Este é o maior legado da luta delas”, conclui a cineasta,
que completa: “É a coisa mais emocionante poder caminhar ao lado dessas
mulheres. Eu falo que elas são minhas orientadoras.”
“A grande resistência são as mulheres.”
O
desembargador
Sérgio Verani lembrou que o ano de 2018 “tem
algumas importantes marcas históricas de referência”. Além da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, que completa 70 anos, a Constituição Federal
brasileira, de 1988, fez 30 anos em outubro; a Lei Áurea, que determinou a abolição
da escravatura, fez 130 anos em maio; e, em 13 de dezembro, faz 50 anos do Ato Institucional
nº 5 (AI 5), de 1968.
“A
Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda não chegou aqui. Aqueles
direitos ali declarados ainda não foram concretizados. Os direitos declarados
na Constituição de 1988 também não foram implantados e os que foram estão sendo
agora aniquilados. A escravidão nunca foi abolida. Ou seja, dessas datas, a única
que ainda sobrevive é o AI 5, que possibilita esse aniquilamento radical do
Direito”, disse Verani.
“Essa
prática do auto de resistência teve início logo depois do AI 5, que foi
instaurado em dezembro de 1968. Em 1969, aqui na Guanabara, a Secretaria de
Segurança fez um ato, uma Portaria, dizendo que não precisava mais fazer
autuação em flagrante e nem inquérito contra policial que matasse no exercício
da sua função. Aí começou isso de auto de resistência. O policial sequer é indiciado”,
explicou o professor.
Sérgio Verani disse
ter ficado “muito feliz com esse encontro na
Defensoria Pública da União” e que o que mais o impressiona nisso tudo é “a
grande possibilidade de resistência contra todo o extermínio dos Direitos Humanos
aqui no Brasil”. Segundo ele, “a grande resistência são as mulheres, a luta das
mulheres, especialmente dessas mulheres que perderam os filhos, mulheres
negras, faveladas, de quem o Estado tira os direitos e tira principalmente a
vida dos filhos. Essas mulheres têm uma valentia, produzida pela dor e pelo
sofrimento, que anima a todos nós que trabalhamos com Direito e nos incentiva também
a participar dessa luta fundamentalmente delas e de todo o povo brasileiro”,
conclui.
“Perdemos completamente a humanidade?”
O
defensor regional de Direitos Humanos Thales Arcoverde Treiger considera que é necessário
que se reflita como é importante que, no Processo Penal, haja um espaço para a vítima
e aponta que é preciso rever a maneira como os casos são tratados atualmente. “A
vítima deve ser tratada com a devida importância. Deve-se dar mais atenção à palavra
da vítima, quando diz que foi agredida, que foi violentada. É relevante pensar
em como ela é minimizada no Processo Penal brasileiro e como isso acaba por
gerar violações de Direitos Humanos, a ponto de a gente ver uma realidade de
impunidade para os crimes mais graves, como a tortura, a violência estatal em
si”, diz o defensor.
“Sem
a palavra da vítima ou sem a palavra da família da vítima quando esta é fatal, fica
inviabilizada a própria tutela dos Direitos Humanos. Quando não se permite que
a família defenda o legado de vida do seu familiar, perpetua-se um Estado
violador, um Estado criminoso, um Estado que guarda aos seus, às suas forças de
segurança. O Estado preserva a si de uma forma violadora de Direitos Humanos”,
completa.
Outra
situação destacada pelo defensor é a ausência de monumentos para vítimas de homicídios
múltiplos. “Não há monumentos para essas vítimas. Na Candelária, por exemplo. Não
há nenhuma lembrança de uma chacina cometida por agentes estatais. Houve ação
policial, houve condenação, tudo foi comprovado, mas a gente não tem uma
memória viva disso e o crime cai no esquecimento. Morreram oito pessoas. Na
Maré, mataram outros seis. Há quem banalize esses números. Dizem: “foram só seis”;
“foram só oito”. Daqui a pouco, dirão que foram só 50, só 100, só 150, só 200
pessoas. Que isso, gente? Perdemos completamente a humanidade?”, questiona
Thales.
“Talvez,
se tivéssemos vários monumentos, comprovando que há uma série de homicídios
múltiplos cometidos pelos próprios agentes do Estado, estaríamos mais atentos
ao problema que é o genocídio da população negra. Talvez, fosse mais fácil para
a gente lembrar de como o racismo estrutural vai dizimando as pessoas. Uma
sociedade vale tanto quanto ela lembra dos seus erros para não cometê-los
novamente”, conclui.
As Mães, a Força, o Amor
Ao
ouvir os relatos emocionados e tomar conhecimento das histórias, certamente uma
das principais questões que envolvem a quem recebe as informações é: de onde
vem tanta força? “Encontro forças no amor pelo Jonathan, no amor que sinto por
ele. É daí que vem minha força, porque vejo nessa luta uma forma de continuar
cuidando dele, de continuar exercendo a minha maternidade para com ele. É como
se eu estivesse cuidando dele ainda”, responde Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, morto aos 19 anos com um tiro nas costas disparado por um
policial da UPP de Manguinhos, em maio de 2014.
“A
força vem porque a gente vê que, todo dia, a polícia está matando um inocente
na favela e a história se repete. Foi com o meu filho, com o da Ana... Não
importa que seja na Rocinha ou em Manguinhos ou no Alemão, é sempre a mesma
coisa. Cada vez que mais uma mãe pede ajuda, a gente tenta ser forte pra estar
junto daquela mãe. Mesmo nem podendo se ajudar, a gente tenta. É pela união da
gente que cada uma acaba fortalecendo a outra. É difícil. Eu já tentei o
suicídio seis vezes, mas a gente tenta ter forças pra seguir. Esse filme “Auto de Resistência”, pra mim, foi uma
maravilha, que é pra mostrar mesmo como é que funcionam algumas coisas dentro
da favela”, diz Maria de Fátima dos Santos Silva, mãe
de Hugo Leonardo dos Santos Silva, morto aos 32 anos com dois tiros disparados por
PMs da UPP da Rocinha, em abril de 2012.
“Dezembro e maio, pra nós, são os
piores meses que existem. Maio é o mês das mães. Toca dentro do útero, que foi
de onde tiraram nossos filhos. Dezembro é Natal e, apesar dessa coisa comercial
em que transformaram a data, ainda tem sim uma cultura da família, do “todos
juntos”, todos se preparando de alguma forma para o dia 24, para o dia 25. E
como é que ficamos nós? É muito difícil. Você tem que conviver com isso todos
os dias, todos os momentos da sua vida. Então, a gente tem que se reinventar,
criar estratégias, se juntando, se escutando, se encontrando, se dando as mãos
e esse dar as mãos é real”, afirma Mônica Cunha, mãe de Rafael da Silva Cunha,
morto por um policial civil, aos 20 anos de idade, em dezembro de 2006.
As vozes dessas mães parecem uma só
pelo incrível foco nos objetivos comuns e clamam por algo que vai além da Justiça
pela morte dos filhos. Elas querem evitar que outras mães sofram a dor que
sentem; querem o fim da criminalização das favelas.
“Parem
de matar nossos filhos. Parem de nos criminalizar. Parem de criminalizar a
favela. Como eu ouvi de um amigo e companheiro de luta, Raul Santiago,
militante lá do Complexo do Alemão, a favela não é violenta. A favela é
violentada. Todos os dias. E violentada pelas autoridades. Violentada por
aqueles que são pagos com nosso dinheiro, por aqueles que deveriam defender os
nossos direitos”, diz Ana.
“Parem
de nos matar. Dentro da favela, não existe só bandido. A maioria é do bem.
Deixem nos viver em paz, do nosso jeito humilde”, pede Fátima.
São
vozes que reivindicam dignidade e respeito, denunciam e fazem de sua luta uma
luta de todos.
“Nós,
mães de vítimas, não somos coitadinhas. Nós somos seres humanos, que estamos
tentando fazer alguma coisa para que melhore essa situação. Isso não é guerra
às drogas. É guerra aos pobres, favelados e negros. Meu filho, de onde estiver,
deve estar com orgulho de mim”, fala Fátima.
“Eu
passei por essa dor porque a gente vive num estado racista, num país racista e
é isso que tem que ser entendido. É isso que a gente tem que ir pra rua gritar,
é isso que a gente não tem que querer mais. A gente é vítima desse estado, que
é genocida. Somente quando as pessoas perceberem isso é que a gente poderá de
fato falar em Direitos Humanos, porque aí serão Direitos Humanos para todos os
seres humanos e não para uma parte dos seres humanos. Queremos respeito.
Resistimos todos os dias porque estamos ensinando a esse Brasil que vamos parir
um país diferente”, afirma Mônica.
“A
ganância do mundo tem feito os poderosos derramarem sangue. Sangue dos pobres.
Sangue dos favelados. Sangue daqueles que eles acham que são descartáveis, mas,
como diz a Débora, que é uma das fundadoras do Movimento das Mães de Maio, nós,
as mães, mesmo mutiladas por terem arrancado um pedaço de nós, estamos saindo à
luta e somos nós, as mães, as mulheres desse país, que vamos parir um novo
Brasil”, avisa Ana.
Confira o álbum de fotos do evento, clicando AQUI.
DPU também marca presença em evento na Alerj
Ainda no dia 10, pela manhã, o defensor regional de Direitos
Humanos Thales Arcoverde Treiger participou de evento,
no plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj),
também promovido para celebrar a data.
Na ocasião, foi concedida a Medalha
Tiradentes e o Diploma Post-Mortem à Marielle Franco, como forma de homenagear à
vereadora, militante de comunidades carentes, ativa na defesa dos direitos humanos
dos moradores dessas localidades, principalmente negros e mulheres, que se
entregou à luta pela construção de um mundo mais justo e solidário e que teve
sua trajetória interrompida, quando foi assassinada em 14 de março deste ano,
no Estácio, região central da cidade. As comendas foram entregues ao pai de
Marielle, senhor Antonio.
Além das homenagens à vereadora, foram
apresentados os relatórios da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, uma prestação de
contas do trabalho realizado ao longo dos dez anos em que o deputado Marcelo
Freixo presidiu o colegiado (mais de 6.500 atendimentos e 80 audiências
públicas foram realizadas), e da Subcomissão da
Verdade na Democracia - Mães de Acari, que reúne dados e testemunhos dos
crimes de execução, tortura e desaparecimento praticados no período
democrático.
Comunicação DPU/RJ
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